sexta-feira, 23 de maio de 2025

A musculação do regime democrático

À mão – Henrique Monteiro

Ao fim de cerca de meio século, afinal, o regime não está assim tão estável e firme como diz o “principal magistrado da nação”, que depois de se livrar do governo de maioria absoluta do partido dito “socialista”, provocou eleições antecipadas pela segunda vez. Como não se conseguira um governo com garantia “estabilidade” à primeira em 2024, então, teve-se de tentar uma segunda vez para alcançar um, de preferência de maioria absoluta e selo PSD, mas mesmo assim não foi possível. O coelho que saiu da cartola ainda não possui a robustez necessária e desejada, daí a necessidade de apoio ou do parceiro do bloco central ou da extrema-direita, que teve a ousadia de se alcandorar a segundo partido do establishment. Parece que tudo aponta para a primeira hipótese, haverá o apoio “socialista”, contudo, não entrará para o governo como na Alemanha. O partido da extrema-direita ficará a liderar a oposição, uma situação assaz inédita. Restará a dúvida sobre a data das próximas eleições legislativas, para então vermos no governo o partido em que a elite nacional está a apostar fortemente no momento presente. A configuração partidária tradicional mudou, e o regime, com ou sem revisão constitucional, ficará com certeza mais “maduro” e “estável”, ao gosto do “alto magistrado da nação”.

A mudança do quadro partidário e o último fôlego do bloco central

Olhando para os resultados dos dois partidos do bloco central, que agora querem a formalização na prática para a tão querida estabilidade, a situação se é desastrosa para o partido que foi fundado na Alemanha em 1973, para o outro a coisa não resultou como se esperava. O partido dito “socialista” passou de 42,50% e 2.302.601 votos, em Janeiro de 2022, que lhe permitiu formar governo de maioria absoluta (um resultado que espantou muita gente e os próprios ditos “socialistas”), para 23,38 % e 1.394.501 votos (resultados ainda provisórios, não são conhecidos os resultados da emigração); em cerca de três anos, perde perto de 1 milhão de votos. A vitória do PSD e o anexo foi uma vitória de Pirro, não foi alcançado o objectivo proposto, a “maior maioria”; dos 38,65% e 2.159.742 votos (108 deputados), a que se juntam os 11,70% e 653.987 votos (24 deputados) do CDS, em 2011, dando origem ao governo pafioso Coelho/Portas, passaram para os 32,10 % e 1.915.098 votos (86 deputados); menos de cerca 900 mil votos e menos 42 deputados. Razão para se perceber as palavras do “alto magistrado” de que o governo durará quanto muito até ao final de 2026; e, em 2027, logo se verá. Afinal, a estabilidade será precária.

Foi patético assistir aos malabarismos do líder demissionário do PS em campanha eleitoral, tentando mostrar a sua moderação e que, jurando a pés juntos que não era e nunca foi um “radical”, como estava a ser injustamente acusado pelo seu principal adversário na corrida eleitoral e por todos os comentadores avençados televisivos. Não conseguiu mostrar diferença entre o PS e o PSD, o que lhe era impossível já que deixou passar o Orçamento de Estado de 2025, a aprovação da Lei dos Solos, preparou o terreno e instrumentos para a privatização da TAP, a “reforma” da Segurança Social, anunciada pela ministra e esposa de banqueiro, a pretexto de assegurar a sua sustentabilidade, e apoio à política quanto à imigração. Fez coro em relação aos gastos com a defesa, ultrapassar os 3% do PIB na indústria da guerra. O PS foi derrotado, foi humilhado, mas só pode queixar-se de si próprio, e vai, ou já está, a apodrecer rapidamente e por este caminho, como referíamos em Janeiro, irá desaparecer ou fundir-se com o PSD, porque não será governo na década mais próxima. Era o partido do “socialismo democrático, para contrapor com O PCP, que não era democrático, resultante do contexto da guerra fria. Ora, o tempo passou e o PS também irá passar.

Apesar de tudo, e deixando a extrema-direita como recurso em segunda linha, os «patrões pedem entendimento entre AD e PS para garantir estabilidade política – Armindo Monteiro, líder da maior confederação patronal, diz ao DN que os “moderados” devem garantir a estabilidade e as reformas essenciais. Os bancos apostam de igual modo no governo do bloco central: «Nuno Amado: país precisa de estabilidade política, mas não de mais "estagnação" - o chairmain do Millennium bcp defendeu que é necessário governo e oposição fazerem "acordos amplos" para alterações estruturais que têm sido "barreiras ao desenvolvimento e bem-estar dos portugueses". Ora, o bem-estar referido é mais dos acionistas da banca que não paga impostos e sempre teve a protecção dos dois partidos do regime. Os trauliteiros da extrema-direitas avançam se PSD e PS se mostrarem incompetentes, até agora têm feito o seu papel: o primeiro usa mais cacete para obrigar o povo a aceitar as medidas mais gravosas a fim de salvar o capital, como se viu durante a troika, o PS mais a cenoura, durante a “geringonça”.

O PS esgotou o seu papel de bombeiro da luta de classes

Com medo de perder as mordomias e o protagonismo verifica-se que os caciques do PS não destoam dos patrões nacionais: «Santos Silva quer nova direção do PS eleita rapidamente, defende viabilização de governo AD»; «PS deve viabilizar Governo se Montenegro quiser "combater a progressão da extrema-direita", diz Medina»; «Francisco Assis defende eleições internas só após autárquicas e diálogo entre PS e AD»; «"PS deveria dizer esta noite que viabiliza um Governo da AD com Luís Montenegro, ponto final" – Sérgio Sousa Pinto diz que o PS não pode deixar a AD "refém" do Chega para poder governar». Estão todos de acordo: bloco central ao poder sem peias nem meias. Ah, ainda! O mesmo Sousa Pinto: “se o partido não acabar com esta direção, esta direção acaba com o partido” e já NPS apresentara a demissão a “bem da estabilidade”, antigamente era a “bem da nação”.

Continuando a ideia anterior, muito provavelmente o PS terá chegado ao fim de linha, o que, diga-se de passagem, não será grande prejuízo para o povo português, e o poeta não esperou para lançar o alerta: «Manuel Alegre alerta que PS corre o risco de se tornar dispensável. Após o terceiro pior resultado em eleições legislativas, o histórico socialista aponta problemas estruturais no PS e sublinha a necessidade de reflexão antes de substituir a liderança». Ora, a substituição da liderança não está a ser fácil pela razão de que os candidatos já apontados estão em debandada; Medina, Leitão e Vieira da Silva já deram o nega, e parece que restará somente o candidato derrotado nas últimas eleições para a direcção, o “ultra-moderado” Carneiro. Ninguém quer herdar uma empresa falida.

Para perceber a situação de dispensabilidade e até de inutilidade, face ao novo contexto económico e social no país e na Europa, temos de conhecer e relembrar qual foi o papel do PS desde que foi fundado, com os marcos da social-democracia para enfiar o pais na CEE/UE, até aos dias de hoje. Foi sabotar a revolução popular, que se seguiu ao 25 de Abril, devolver as empresas recapitalizadas aos patrões que fugiram para o Brasil, incluindo os bancos (o caso BES é paradigmático), amnistiar agentes da PIDE e juízes do Tribunal Plenário, branquear o fascismo, impor todas as reformas e medidas “aconselhadas” por Bruxelas, reforçar os aparelhos judicial e policial e comprar a paz social. Não esquecer que o governo PS/Costa lançou mais requisições civis sobre os trabalhadores que Salazar e, com o pretexto de combate á pandemia da Covid e a mando de Bruxelas, impôs os estados de emergência com a limitação das liberdade, direitos e garantias dos cidadãos. Costa não revogou nem a Lei Cristas, responsável pelos despejos e a especulação imobiliária, nem as alterações ao Código do Trabalho, pelo contrário, acrescentou mais algumas para regozijo dos patrões esclavagistas nacionais. Tanto o SNS como a Escola Pública foram sendo degrados para benefício dos lóbis privados do sector. Se o PS se finar, não deixará grandes saudades, porque foi ele que contribuiu e aplanou o caminho para o novo fascismo que se advinha.

PSD como transição para a extrema-direita

Quanto ao PSD, este está por tudo e não faz orelhas mocas aos apelos e vai mais longe no seu longo abraço: «Hugo Soares e Leitão Amaro admitem negociações com o Chega: o “não é não” é para entrada no governo». Ou seja, fica em lista de espera por agora, se a muleta do PS falhar e caso seja necessário até o poderão aceitar no governo; vamos lá ver como as coisas irão decorrer. No entanto, o grande líder, embriagado pelo aumento do apoio eleitoral e do número de “representantes da nação” eleitos e que ninguém conhece por que não foram publicitados, possivelmente pela riqueza dos curricula, saliva pelo poder e quer mais: «Ventura já prepara governo-sombra com nomes de fora do partido: “somos contra os jobs for the boys” e está “pronto para governar” o país se assim chegar o momento». Ou quando a elite desejar e der ordem.

Relembrar que o agora “principal partido da oposição” foi um partido criado em tempo de governo PS, que pôde legalizar-se contrariando a lei e a Constituição da República, para ser usado contra o PSD, retirando-lhe votos, e simultaneamente assustar a pequena-burguesia medrosa para votar nos partidos politicamente correctos. Mas, ironicamente, virou-se contra o próprio PS, ocupando-lhe o lugar no Parlamento e no país e oficializando a união de facto, agora de jure, entre os dois parceiros do bloco central. Situação que não deixará de ser temporária. E é Marcelo que o reconhece: «o Presidente da República acredita que será possível estabilizar a situação política — foi isso que assegurou logo depois das primeiras reuniões com os partidos maiores, que “correram bem” — mas dificilmente durante uma legislatura inteira». Ainda tem dúvidas e dá a entender que o seu objectivo será mesmo colocar não só a extrema-direita no governo como mudar o regime, a mudança da Constituição não será apenas uma preocupação dos ditos “liberais”. Será a revanche de um filho do fascismo.

A pequena-burguesia sem espaço partidário

Em relação aos outros partidos com tradicional maior representação parlamentar e que já estavam, de uma ou outra forma, inseridos no establishment, BE e PCP, a situação é deveras preocupante quanto à sua continuidade na Assembleia da República. O primeiro passou de 10,19% e 550.892 votos (19 deputados), em 2015, para 2,00 % e 119.211 votos (1 deputado), perdeu cerca de 430 mil votos. Poderá estar em vias de extinção, um partido que, quando foi criado, resultando de coligação de várias agremiações, propunha-se conquistar 15% do eleitorado e, a médio prazo, substituir-se ao PS, à semelhança do que acontecera na Grécia com o Syriza. Acabando o BE, talvez o Livre, parido das suas entranhas, venha a cumprir a tarefa que ficou por concluir, e já disse ao que vem: «Livre quer "relação construtiva" com a esquerda».

A agremiação de partidos começou pelas questões “fracturantes” e acabou acomodado nas mordomias e subvenções parlamentares. Jamais colocou em causa o capitalismo como sistema de exploração, defende um capitalismo bonzinho e fofinho para os trabalhadores. Nega a existência e a luta de classes, existe somente grupos e lutas identitários; o inimigo não é o capitalismo, mas o outra facção que se contrapõe, por exemplo, as mulheres lutam contra o domínio machista, os negros contra a supremacia branca, os trabalhadores migrantes confrontam-se com os nacionais, os homossexuais, lésbicas, transsexuais, etc, confrontam-se com os heterossexuais, e por aí fora. A nível de política externa, seguem o PS, defesa das guerras do Império, manutenção do país na NATO, reconhecimento dos fantoches Gaidós. Esta pequena-burguesia urbana, em vias de proletarização, desaparecerá também.

O outro, o partido mais antigo do país, com pergaminhos na luta contra o fascismo, de 8,25% e 445.980 votos (17 deputados), em 2015, passou para 3,03 % e 180.943 votos (3 deputados), prejuízo de mais de 260 mil votos. Não estamos a ver este partido reverter a social-democratização em que se encontra mergulhado, limitando-se a acções e lutas por reivindicações imediatas e economicistas, facilmente recuperadas pela burguesia, como seja o aumento dos salários, sem colocar em causa a existência do regime de salariato e do domínio político e económico da burguesia. Os custos é a própria sobrevivência e o futuro não será muito diferente do dos ditos partidos “eurocomunistas”. Tanto o PCP como o BES, como já referenciámos aqui, deram-se mal com o apoio à formação do primeiro governo do PS/Costa (“geringonça”), porque até às eleições de 2022, enquanto minguavam em votos e número de deputados, o PS/Costa ia aumentando até chegar à maioria absoluta. Foram usados, porque quiseram, e agora pagam o preço.

Há cada vez menos espaço para partidos do centro e da pequena-burguesia, a social-democracia está morta, na luta de classes os campos extremaram-se e agora a confrontação é entre a classe assalariada e a grande burguesia capitalista, sem intermediários pelo meio. E o confronto vai ser violento. 

A musculação da democracia burguesa

Para se avaliar o espírito democrático de alguém é estarmos atentos aos pequenos deslizes, e o rei/presidente, que queria ser Sidónio Pais, às vezes foge-lhe o pé para a chinela: «Marcelo diz que reunião com Pedro Nuno foi simbólica e não vê problema na moção do PCP». São com os velhos fascistas, disfarçados de democratas, a que se juntam os políticos e os partidos da conciliação, tendo como pano de fundo a revisão da história, em Portugal nunca houve fascismo, isso são coisas dos italianos, quanto muito um regime autoritário de cunho pessoal, que se escorrega para novas formas de fascismo.

Para quê tantos deputados na Assembleia da República? 180 chegarão. É uma velha proposta do PSD, de 2005 se não estamos em erro, que agora o partido da extrema-direita corrobora e quer que seja colocada a referendo. E por que não alterar o actual método de Hondt que desperdiça centenas de milhares de votos e não criar círculos uninominais ou coisa semelhante? Todas boas razões para “aproximar” os eleitores dos seus representantes, são os argumentos de muito boa gente. Agora, os partidos com menos de 5% de votos poderão fazer contas à vida, BE e PCP são os alvos. Os restantes pouco ou nada contam, são mais de uma dúzia, mas não passam de flores de lapela para se mostrar que nesta chafarica até há democracia e pluralidade. O fascismo vem com pezinhos de lã, como na canção.

Será o estado da economia e o comportamento da classe dos explorados e do povo que determinarão a longevidade da democracia parlamentar burguesa. E isso ficou bem patente na I República, quando o povo deixou de apoiar o regime e a situação de bancarrota da economia era iminente, então, a elite substituiu a o voto pela espingarda. Ora, os nossos empresários de sucesso que sempre viveram encostados ao estado, e tiveram o PS e o PSD como os seus principais agentes de negócios, poderão mudar de funcionários se reconhecerem que tal lhes é vantajoso; o que poderá acontecer a breve prazo com a extrema-direita no governo. E eles queixam-se: «Setor têxtil português quer taxa mínima de 20 euros para encomendas vindas da China». Defendem a livre concorrência, mas só quando as coisas lhes correm bem, e são os tais que pagam salários miseráveis aos trabalhadores, que os impedem de adquirir bens eventualmente nacionais mais caros. Como não querem ver baixar os lucros, então, recorrem ao estado que os proteja, embora o critiquem por querer intervir na economia. Esta gente contraditória não deixa de ser perigosa.

Se a burguesia, a fim salvar o seu sistema de exploração e as suas riquezas, está disposta em apostar num fascismo soft, mais polido que o anterior, e num caudilho, salvador da Pátria, que está a ser lançado para Belém nos mesmos moldes, pelos mesmos oligarcas e pelos mesmíssimos media mainstream, que promoveram o partido de extrema-direita, os operários e o povo deste país terão de encontrar uma saída revolucionária que seja o contraponto e à mesma altura. A partir de agora não são somente os direitos e liberdades básicas, como o direito à greve, que o PS já prometera limitar em sectores chave da economia, o direito à saúde, à educação ou habitação estão em causa, mas a tentativa de transformar o país num imenso campo de trabalho escravo, muito semelhante ao que está a acontecer na Argentina, para multiplicação desmesurada das mais valias acumuladas pelos capitalistas. Para mudar a economia e não apenas a política, tarefa que ficou incompleta no Verão de 1975, haverá de se criar instrumentos organizativos e políticos à altura da tarefa, e o operariado e demais trabalhadores assalariados irão fazê-lo no momento oportuno, porque necessário.

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